quarta-feira, 11 de novembro de 2015

A Primavera das Mulheres


VIDA
Uma nova geração de ativistas toma as ruas 
e as redes sociais – e cria o movimento 
político mais importante 
do Brasil na atualidade

CRISTINA GRILLO, GRAZIELE OLIVEIRA
 E MARCELA BUSCATO, COM ANA HELENA RODRIGUES,
GABRIELA VARELLA, HARUMI VISCONTI E SÉRGIO GARCIA
07/11/2015 - 00h17 - Atualizado 10/11/2015 16h01

Natasha Mosley é uma adolescente de 15 anos. Quando caminha pelas ruas da Zona Sul do Rio de Janeiro, onde mora, atrai olhares. Isso a incomoda. Aluna da Escola Parque, no bairro da Gávea, ela diz sentir medo quando ouve uma cantada na rua, mesmo aquelas que aos olhares de mulheres mais velhas possam parecer inocentes. “Uma pessoa que não me conhece não tem o direito de dizer certas coisas para mim. Tenho vontade de reagir, de dizer que não quero ouvir aquilo, mas fico com medo. Se um menino da escola me cantar, posso dizer para ele que aquilo não me agrada porque estamos em igualdade de condições. Mas na rua, de um desconhecido, não posso fazer nada. Isso me oprime.”
A violência de uma cantada indesejada parece pequena diante de casos como o da bailarina Ana Carolina de Souza Vieira, de 30 anos, assassinada em São Paulo por um ex-namorado ciumento, Anderson Rodrigues Leitão, de 27 anos. Ou diante das agressões verbais sofridas pela jornalista Leka Peres no Facebook e via WhatsApp depois de criticar a decoração da lanchonete The Dog Haüs, no Itaim, em São Paulo – um quadro na parede trazia os dizeres: “Guys: no shirts, no service. Girls: no shirts, free drinks” (“Homens: sem camisa, sem serviço. Garotas: sem camisa, bebidas grátis”). Ou ainda diante da aprovação em uma comissão da Câmara dos Deputados do projeto de lei que dificulta ainda mais que vítimas de violência sexual possam interromper a gravidez.
Revista ÉPOCA - capa da edição 909 - A primavera das mulheres (Foto: Revista ÉPOCA/Divulgação)
Todos esses casos, do mais leve ao mais extremo, têm no entanto algo em comum: são inaceitáveis – e as mulheres, de todas as idades e gerações, não estão mais dispostas a contemporizar. Nos últimos dias, uma onda de protestos femininos varreu o país, nas ruas e nas redes sociais, numa espécie de Primavera das Mulheres, um “no pasarán”a uma cultura que, muitas vezes, vê as vítimas como culpadas pelas agressões sofridas. A rede foi-se formando aos poucos, com ativistas como as mulheres que estão nesta reportagem, até arregimentar multidões que saem às ruas, como a que aparece na capa de ÉPOCA desta semana.
O estopim para a mobilização feminina, que já vinha se desenhando nas escolas, universidades e locais de trabalho, veio no mês passado, quando mensagens de teor sexual a respeito de uma menina de 12 anos ganharam as redes sociais. O Brasil se chocou com a brutalidade das ofensas contra Valentina, a participante do programa de TV MasterChef Júnior. A indignação fez com que milhares de mulheres de todas as idades se sentissem livres para relatar nas redes sociais situações em que se sentiram humilhadas, subjugadas por homens que se achavam no direito de persegui-las, tocá-las, ofendê-las e, em casos mais graves, estuprá-las. Sob a hashtag primeiroassedio, a campanha trouxe à luz histórias havia anos mantidas em segredo por mulheres que se sentiam envergonhadas, como se tivessem culpa de ataques a caminho do trabalho, na volta da escola, no metrô, numa festa de família.
No coro de Valentinas estão mulheres como a jornalista paulistana Juliana de Faria, de 30 anos. Há dois anos à frente do grupo Think Olga, espaço virtual para discutir questões femininas, Juliana ajudou a criar condições para que agressões cotidianas sejam finalmente encaradas pela sociedade como inaceitáveis. É do Think Olga a campanha #primeiroassedio e o movimento Chega de Fiu-Fiu, que começou com uma pesquisa sobre as cantadas que as mulheres ouvem nas ruas. Das 8 mil entrevistadas, 99,6% relataram já ter passado por situações constrangedoras. Assim como Juliana, Natasha e outras mulheres retratadas nesta reportagem, milhares delas estão construindo as bases do que pode ser chamado não de um novo feminismo, mas de uma onda revigorada da luta pelos direitos das mulheres. “Hoje a feminista está no cotidiano, não é mais aquela com o sutiã na mão, como era vista antigamente”, diz a antropóloga Debora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB). O feminismo ficou pop, como diz a historiadora Margareth Rago, da Universidade Estadual de Campinas.
Juliana de Faria: Juliana de Faria, criadora do grupo que lançou a campanha #primeiroassedio, relata o assédio que sofria dentro da escola (Foto: Edu Lopes/Click de Gente/ÉPOCA, Produção Daniele Verillo, Makeup Adilson Vital)
A discussão sobre esses direitos, que parecia ter parado há alguns anos diante de um muro, ganhou nova força. No início do século XX, as mulheres reivindicavam o direito ao voto, conquistado pelas brasileiras em 1932. Nos anos 1960, embaladas pelo grito de liberdade da americana Betty Friedan, mulheres entediadas pelas limitações da vida doméstica se lançaram no mercado de trabalho, jogaram sutiãs no lixo para confrontar padrões estéticos e, libertadas pela pílula anticoncepcional, se encantaram com as possibilidades do amor livre. Nos anos 2000, a tônica da discussão avançou para o mercado de trabalho: por que tão poucas mulheres estão em cargos de liderança? Inspiradas por exemplos como o de Sheryl Sandberg, diretora operacional do Facebook, as brasileiras refletiam sobre os estereótipos negativos associados a mulheres na chefia (leia o artigo na página 74) e como poderiam ajudar as empresas a adotar uma nova cultura de liderança, livre de clichês de gênero.
Os acontecimentos das últimas semanas trouxeram a discussão de volta a uma etapa primordial: o direito ao próprio corpo. As ofensas a Valentina, as críticas contra o Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, por incluir o trecho de um livro da escritora francesa Simone de Beauvoir, as ofensas à atriz Taís Araújo (leia a reportagem na página 23), o projeto de lei que pode dificultar o acesso legal ao aborto em casos de estupro (leia o artigo na página 76) deixam evidente que a velha questão está longe de estar resolvida. “Nos anos 1960 e 1970, rompemos barreiras e avançamos em muitos pontos. Éramos a onda libertária, agora temos de enfrentar a onda conservadora”, diz a educadora Patrícia Lins e Silva, de 70 anos, fundadora da Escola Parque, onde Natasha estuda.
Graças à mobilização que militantes como Juliana orquestram há alguns anos, as mulheres se viram fortes o suficiente para protestar. “O que aconteceu nas últimas semanas é uma vitória”, afirma Juliana. “O primeiro passo é expor como violento algo que não era entendido como violência” – caso, muitas vezes, das cantadas de rua. Qual mulher não ouviu, ao menos uma vez na vida, que devia encará-las como um elogio? “A primeira vez que fui assediada eu tinha 11 anos. Estava voltando da padaria, um carro passou perto de mim e gritou palavrões. Não entendi aquilo e comecei a chorar. Uma senhora me parou na rua e me disse ‘não seja boba, aceite isso como um elogio’”, diz Juliana. Há dois anos, Juliana pensou em usar a internet para desabafar contra o assédio sexual em locais públicos, uma angústia que ecoou em mulheres do país inteiro. “As meninas finalmente se apossaram de seu direito à liberdade sexual e agora têm a internet, uma ferramenta poderosa de comunicação para se fazer ouvir”, diz Maria Helena Vilela, diretora do Instituto Kaplan, de educação sexual.
A jornalista Ana Carolina Nunes ajudou o Metrô de São Paulo a criar uma campanha contra o assédio às mulheres nas estações e nos vagões (Foto: Edu Lopes/Click de Gente/ÉPOCA, Produção Daniele Verillo, Makeup Adilson Vital)
Para muita gente, a mobilização feminina brasileira foi uma surpresa. Mas para muitas mulheres foi o escancarar de uma realidade vivida – e sofrida – rotineiramente (leia o artigo na página 78). Estudante de medicina veterinária na Universidade Federal de Viçosa, Minas Gerais, e membro do coletivo Vacas Profanas, Caren Lopes Oliveira, de 20 anos, diz que a violência se dá de várias formas, como estar em um espaço público e saber que não pode usar determinada roupa porque vai ser assediada. “Vim de saia hoje para a faculdade, mas me senti acuada. Gostaria que um dia ninguém mais se sentisse assim. É isso que o feminismo busca.” Um caso recente colocou o Vacas Profanas na mídia. Representantes do grupo foram à Tribuna da Câmara Municipal de Viçosa em setembro falar sobre os casos de assédio e violência sexual ocorridos nas festas da cidade. A resposta do vereador Helder Evangelista (PHS) foi que a vítima da agressão “queria ser estuprada”. O grupo e outros movimentos estudantis foram à Câmara Municipal manifestar repúdio ao comentário do parlamentar.
Alardear violências cotidianas, como fez o Vacas Profanas, é uma forma efetiva de chamar a atenção para comportamentos que, aos olhos de muitos, são “normais”, mas amedrontam as mulheres. Ao descer de um ônibus em uma praça deserta de Porto Alegre, Babi Souza, de 24 anos, se deu conta de que, a seu redor, outras mulheres caminhavam agarradas a suas bolsas, com o coração acelerado. “E se eu tivesse convidado uma delas para caminhar comigo?”, diz. Daí surgiu a ideia do movimento Vamos Juntas?. A página no Facebook incentiva a aproximação de mulheres, para que se sintam menos vulneráveis em situações perigosas. Babi queria criar um aplicativo para facilitar o encontro de mulheres nas ruas para idas e vindas mais tranquilas. No entanto, percebeu que aquilo poderia ser usado para facilitar a localização de mulheres sozinhas. O projeto foi modificado e agora vai mapear locais onde houve assédios, lugares perigosos, mal iluminados e criar vários tipos de alerta – uma espécie de Waze que, em vez de indicar o caminho mais rápido, aponta o mais seguro.
A universitária Caren Lopes Oliveira, de 20 anos, participa de um grupo de mulheres em Viçosa (MG) para denunciar o assédio às mulheres (Foto: Pro fotos Viçosa MG/ÉPOCA)
Segurança também era a principal preocupação da designer Liliane Oliveira, de 32 anos, integrante da Marcha das Mulheres. Da infância na periferia de Salvador, guarda a lembrança dos momentos tensos que vivia ao voltar da escola. Ela e a irmã, mais nova, andavam todos os dias cerca de 4 quilômetros para chegar em casa. “Sempre tinha gente que mexia conosco. Todos os dias eu pegava uma pedra grande ou um pedaço de pau para nos defender caso acontecesse algo”, diz Liliane. A estratégia funcionava contra os agressores covardes. “Homens deixavam de nos seguir ou de andar muito perto por saber que estávamos armadas”, afirma. Em Salvador e na cidade de Pintadas, interior da Bahia, a Marcha das Mulheres montou núcleos que acolhem vítimas de violência doméstica e que não têm para onde ir.
A violência contra as mulheres assume várias formas. Enquanto Babi, em Porto Alegre, se preocupa com a segurança nas ruas e Liliane, em Salvador, monta núcleos para assistir vítimas de violência, no Rio jovens de escolas de classe média travam a “guerra do shortinho”. O que as adolescentes reivindicam é o direito de usar as roupas que quiserem, sem que sejam o indicativo de que estão “disponíveis”. No Colégio São Vicente de Paulo, em Laranjeiras, Zona Sul da cidade, jovens com idades entre 15 e 18 anos criaram o coletivo Femininjas – no Facebook já são 113 garotas, e meninos não são aceitos. “Assim temos um ambiente mais seguro para as meninas se exporem”, explica Sofia Magalhães, femininja de 17 anos e aluna do 3º ano do ensino médio.
Na escola, de perfil liberal, Sofia já discutiu com um professor que disse que mulher não pode usar short muito curto. A escola também foi palco de discussões, levantadas por alunos, sobre a necessidade de criar um banheiro para transgêneros e sobre o direito de as meninas jogarem futebol usando tops, e não camisetas – sob o argumento de que meninos podem ficar sem camisa. Na Escola Parque a “guerra dos shortinhos” também domina as discussões. “Entendo que há roupas adequadas para cada situação, mas por que os meninos que andam com metade da cueca aparecendo não são repreendidos?”, pergunta Natasha Mosley. “Ela tem razão, é um tema sobre o qual devemos pensar”, diz a educadora Patrícia Lins e Silva. “Graças ao acesso à informação, essas meninas conseguem dar nome às experiências que todas as mulheres já passaram. Nós víamos os exemplos de desigualdade como parte da vivência do ser mulher. Agora, elas conseguem nomear isso. Começa com experiências miúdas: é o short que é proibido na escola, é o cabelo”, diz a antropóloga Debora Diniz, da UnB.
A baiana Liliane Oliveira foi violentada na faculdade. Hoje, ela faz parte de um grupo para lutar pelos direitos femininos (Foto: Márcio Lima/ÉPOCA)
Filha de mãe doméstica e pai segurança de prédios, a baiana Monique Evelle, de 21 anos, teve de lidar, desde criança, com uma série de comportamentos discriminatórios. Mulher, negra e de origem pobre, moradora de um bairro na periferia de Salvador, o bom desempenho escolar lhe garantiu o acesso, como bolsista, a boas escolas. Mas, nelas, ouvia comentários ofensivos. “Meus colegas mais velhos diziam que era impossível eu ainda ser virgem aos 14 anos porque as negras eram quentes”, afirma. Aos 16 anos, Monique fundou a rede Desabafo Social, que trabalha com educação e formação social, em especial da juventude negra em 22 Estados. Desde maio deste ano e a cada 15 dias, oferece cursos a 16 meninas da Unidade de Internação Feminina de Alagoas, em que as jovens, entre 13 e 17 anos, debatem a forma como a sociedade as enxerga, os direitos que têm e como reagir aos abusos e agressões sofridos por serem mulheres. Agora o projeto vai se estender para as mães das meninas.
Chamar a atenção para um tipo de abuso que muitas mulheres sofrem foi o que fez a jornalista Ana Carolina Nunes, de 24 anos. Moradora do bairro da Saúde, na Zona Sul de São Paulo, Ana circula pela cidade sobre trilhos. E, assim como muitas – se não a maioria – das usuárias do metrô paulista, já passou por situações de abuso sexual nos vagões. O assédio nos trens e estações é prática comum, especialmente nos horários de maior movimento. Os registros de abuso e tentativa de estupro nas dependências do metrô subiram de 65, de janeiro a agosto de 2014, para 100, no mesmo período deste ano. Todos os dias, o metrô é usado por mais de 4 milhões de pessoas. Dessas, 55% são mulheres. A Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou um projeto de lei criando um vagão exclusivo para mulheres nos horários de mais movimento. Conhecido popularmente como o “vagão rosa”, ele já existe no Rio de Janeiro, mas em São Paulo a proposta foi vetada pelo governador Geraldo Alckmin. Ana Carolina não desistiu. Montou uma campanha com a amiga Nana Soares alertando sobre o assédio contra mulheres nos transportes públicos. Ana é contra a ideia de um vagão rosa ou de qualquer outra cor que separe as mulheres dos homens. “Seria a ratificação dessa justificativa biológica de que homens têm necessidades e não conseguem se controlar”, diz. Hoje frases como “Você não está sozinha. Estamos juntas contra o abuso sexual” estampam cartazes e monitores dos vagões.
Monique Evelle fundou o grupo Desabafo Social, que dá aulas para meninas infratoras em Alagoas (Foto: Edu Lopes/Click de Gente/ÉPOCA,Produção Daniele Verillo,Makeup Adilson Vital)
No transporte público, nas ruas, dentro de casa, nas escolas, universidades ou grandes empresas, não importa onde, as mulheres decidiram que é hora de se defender dos abusos. E contam com os homens nessa batalha. A luta contra a violência que atinge as mulheres não é um problema de um gênero, mas da humanidade. Faz parte dessa linha que separa a civilização da barbárie.
Babi Souza, 24 anos Ela criou o movimento Vamos Juntas?, no Facebook,  para que mulheres não andem sozinhas em Porto Alegre (Foto: Ricardo Jaeger/ÉPOCA)
Conheça as ativistas da #PrimaveradasMulheres:
Fonte: Revista Época 





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